sexta-feira, julho 25, 2008

sobre vinicius

Tive a felicidade de conviver e trabalhar com Vinicius de Moraes, meu amigo querido, ser humano único e de tal grandeza que mesmo a sua riquíssima obra acabou ficando meio obscurecida pela pessoa. No dia 10 de julho _ data inaugural da bossa nova segundo estudiosos, pois foi o dia da gravação de 'Chega de Saudade' por João Gilberto em 1958 _ saiu na Folha de SP um encarte sobre o movimento. Na página central, 3 textos encomendados pelo jornal sobre os 3 principais criadores da bossa: um sobre Tom (de Artur Nestrovski, colaborador habitual da Folha), um de Caetano sobre João, e um sobre Vinicius, que tocou a mim escrever. Como já foi publicado, aqui vai (sem foto, por enquanto):

Letra de música é uma forma esquisita de poesia. Pegue um texto de Drummond, por exemplo: por mais que se tente, é quase impossível musicar decentemente aquelas palavras de pedra. O letrista de música popular tem de dar nó em pingo d’água para encaixar no tempo exato da melodia a frase que fará sentido e ainda será boa de cantar. Pois é preciso que haja um espaço de conforto para quem canta. É preciso fazer a palavra suingar, ter leveza. Na boca do cantor, a palavra dança. Mas também tem o peso do fundo além da forma, pois no Brasil a música popular é a grande porta-voz da cultura, mais do que qualquer outra expressão de arte.

Nesse sentido, uma letra como a de “Chega de Saudade” é exemplar. Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim, peixinhos a nadar no mar, que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim… e pronto, tudo está dito de maneira gostosa e lúdica. Mas o autor destas palavras é também o poeta das grandes canções de amores demais: por toda a minha vida, a cada despedida vou te amar, desesperadamente. E ainda iria, num futuro próximo, desaguar na mitologia dos afro-sambas. Não é pouca coisa.

Durante muito tempo a obra de Vinicius de Moraes foi tratada como mobília no universo da MPB. Sua personalidade exuberante ajudou a criar a figura folclórica do “Poetinha”, assim mesmo no diminutivo; a lenda do poeta-que-viveu-como-poeta, obscurecendo a importancia da obra. Mas a verdade é que Vinicius de fato inaugurou a letra de música como forma poética estabelecida, e todos os que vieram depois dele _ discípulos diretos, como Chico Buarque _ tiveram, a partir daí, suas canções merecidamente elevadas ao status de poesia legítima.

Vinicius já era autor reconhecido na cena literária brasileira quando explodiu como letrista. O sucesso popular das primeiras parcerias com Tom Jobim, de luxuosa simplicidade bossanovista, surpreendeu e acendeu uma luz vermelha em seus pares, como Manuel Bandeira, que não se encabulou em lhe dizer ao pé do ouvido: “esse é o único tipo de sucesso que eu invejo”. O sucesso invejável, no caso, era a música assobiada na rua, cantada por aí, sem que o cantante ocasional ligasse o nome `a pessoa _ o sonho de todo compositor, e pelo visto, também de alguns poetas.

Vinicius não foi o primeiro letrista brasileiro a escrever de maneira coloquial na MPB, como equivocadamente se insiste em dizer. Antes dele, Noel Rosa e todos os moderníssimos compositores dos anos 30 já escreviam na linguagem esperta das ruas. Mas assim como Tom Jobim na música, Vinicius foi a ponte entre o popular e o erudito, que até então não existia. Tom tinha formação clássica e sua obra musical deve tanto a Debussy, Ravel e Villa-Lobos quanto a Ary Barroso, Caymmi e o jazz. Da mesma forma, seu parceiro Vinicius tinha o mesmo diálogo com a grande literatura que Tom com a música erudita. Mas também bebia na fonte ainda pura do samba, e venerava igualmente Shakespeare e João da Baiana.

Poeta e diplomata, melodista (sim!) e autor de versos definitivos e transformadores no cancioneiro do Brasil _ só no Brasil um Vinicius de Moraes seria possível.

6 Comments:

At 2:17 PM, Blogger pituco said...

Joyce,
piramidal teu texto...informativo e emocionante...obrigado.

o poeta Vinícius de Moraes,talvez quem de fato colocou a bossa nova,a nova música da zona sul carioca na boca do mundo...???

curiosidade...Joyce,como o poetinha te chamava?

abraçsonoros e amplificados

 
At 11:31 PM, Anonymous Anônimo said...

esta coisa de poema e letra de música é pra mim uma questão de ritmo (não necessariamente no sentido musical),
ambas em geral tem ritmos diferentes.
a maioria dos poemas talvez sejam imusicáveis (perdoe o neologismo), assim como a maioria das letras de música, quando lidas ou declamadas soam terríveis, pra dizer o mínimo.
alguns poemas e algumas letras de música conseguem viver bem nos dois mundos.
vou só citar dois exemplos de poemas que viraram lindas músicas.
canção amiga do drummond com música do bituca (já que você o colocou na história)
e é claro berimbau do manuel bandeira que você musicou.
vou parando por aqui, pois afinal de contas eu estou ensinando o padre nosso ao vigário.
beijos
Túlio

 
At 9:14 AM, Anonymous Anônimo said...

Joyce.
Vinícius, como diplomata, morou em Los Angeles, Paris, Roma e Montevidéu. Abandonou essa carreira em 1968, sob o pretexto de não poder viver longe do seu Botafogo e da música e mulheres brasileiras. Tanto que se casou 9 vezes. Era difícil acompanhá-lo na noite. "O uísque é o melhor amigo do homem. Um cachorro engarrafado".Quando já condenado pelos médicos, foi abordado por uma repórter inoportuna com a seguinte pergunta:"Você tem de medo da morte?" A resposta, claro, poética:"Não, minha filha. Mas já estou ficando com saudade da vida".

 
At 9:24 AM, Anonymous Anônimo said...

Joyce (em tempo)
O seu depoimento sobre Vinícius no filme Coisa Mais Linda já tinha sido preciso e tocante, com direito a uma versão emocionante para Eu Sei Que Vou Te Amar, aliás um show de harmonia que só os grandes craques porporcionam.

 
At 11:05 AM, Anonymous Anônimo said...

À minha cantora preferida confiente que ela lerá:
Olá Joyce! Você não sabe mas nós estamos super íntimas(rs)... tenho te ouvido o dia todo. Eu,Iria, aquela cantora de 25 anos daqui de Curitiba que vai fazer um show só com suas músicas. Tenho que te contar que foi uma dificuldade só conseguir todos seus discos. olha, esse show não vai ser nenhum tipo de homenagem com slides da sua infância e tal(rs). Desculpe, mas eu tenho que te contar, estou até sonhando com você...Meu Deus!
Um beijo.

 
At 12:52 PM, Blogger Luiz Antonio said...

Já que falaste do Bandeira, o Manuel. Gostava muito de ser retratado e mal sabia que poderia ser _e muito_ cantarolado (ou sabia que não precisava "invejar" nada?)que seus versos já eram melódicos? Precisava algum músico juntá-los como fez Olivia Hime num disco ÚNICO, IMPERDÍVEL, ANTOLÓGICO E LINDO da poesia de Bandeira. Difícil, não fosse um trabalho póstumo sobre a obra dele, saber, alí, quem nasceu primeiro se foi a música ou o poema.

 

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