sábado, outubro 22, 2011

michel

Assistimos ao documentário de Michael Radford sobre Michel Petrucciani, exibido aqui no festival do Rio. Gostei de ter visto, embora, para quem não conheceu a figura, o personagem pareça mais exótico do que era na realidade. Ou talvez a gente só se dê conta de certas coisas muito depois, sei lá.

Fomos amigos, privamos de uma razoável proximidade. A primeira vez que o vimos tocar foi em 1986, aqui no Rio, no Free Jazz Festival. Ficamos chapados com o talento do garoto de 24 anos, que precisava ser carregado no colo até o piano - mas que, chegando lá, era uma prova viva da existência de Deus. Três anos se passaram, eu estava fazendo um show no New Morning, em Paris, e eis que Michel estava na plateia. Terminado o show, fui falar com ele, e disse o quanto me havia emocionado com sua apresentação aqui no Rio. Ele fez muxôxo, perguntou por que. Talvez achasse que eu iria dizer alguma platitude com relação à sua deficiência, ou coisa parecida. Era provavelmente o que a maioria das pessoas sempre lhe dizia. Mas eu falei a verdade: "porque você me fez lembrar de Bill Evans". Bingo. Bill era o ídolo dele (e de todo e qualquer pianista de jazz que se preze, é bom lembrar).

Depois disso, a cada vez que passávamos por NY a trabalho e ele estava lá, ou ele ia nos ver ou nós a ele. Em 1992 fizemos uma temporada numa casa novaiorquina chamada Ballroom, hoje extinta, e ele apareceu por lá quase todas as noites. E também o vimos outras tantas vezes tocando no Vanguard, com nosso também amigo Joe Lovano e com Charles Lloyd (responsável por apresentá-lo ao mundo dos jazzistas americanos quando ele tinha 17 anos, recém-chegado da França). Vimos uma briga feia dos dois (Michel e Lloyd), com xingamentos mútuos e Michel saindo do palco injuriado antes do final do show. Passamos uma divertida noite no apartamento dele na 12th street, nós e nossa amiga Jessica, ourives californiana que ele hospedava na ocasião. Nessa noite ele propôs ao Tutty: "você é alto e forte, mas é gago; eu sou deficiente e só tenho 1,20m, mas falo pra caramba. A gente podia fazer uma dupla." Michel e seu humor pra lá de negro.

Vendo o filme, com o tempo e a distância, nos demos conta de que realmente Michel, como Tim Maia, 'mentia um pouquinho'. Ou 'às vezes falava a verdade', como disse num depoimento um amigo seu. Mas tudo cessava ou perdia a importância quando ele punha aquelas mãos enormes no piano. Deus sabe o que faz. Michel era genial, mesmo com sua língua de trapo e sua compulsão por mulheres, drogas e bombons. Chegamos a planejar um disco ou uma parceria juntos, que nunca se materializou. Hélas! Não se pode ter tudo.

Na última vez em que nos vimos eu estava no Japão lançando um novo CD, e ele se apresentava com seu trio no Blue Note Tokyo. Já contei essa história no meu livro, 'Fotografei Você na Minha Rolleiflex', e não vou repetir. Nossa foto juntos, que está no livro, também sumiu no processo de edição, e por isso não está aqui. Mas não posso esquecer do detalhe final, que não contei antes. Na despedida, depois de fazer todos os elogios do mundo aos músicos do seu trio sobre o Tutty, descrevendo com minúcias seu jeito de tocar, Michel resolve lhe mandar um bilhete (eu viajara sozinha daquela vez). E escreve o seguinte: "Tutty, where are you? I miss you! Michel" Para depois completar, com seu humor típico e sacana: "PS- your wife is beautiful". Esse era o Michel.

3 Comments:

At 6:11 AM, Blogger pituco said...

joyce,

ainda não assisti...mas, esse baixinho é gigante em sua arte, com certeza...

e que sorte a tua ter acertado a referência no elogio...comigo, via de regra é uma 'gafe'...

abraçsonoros

 
At 12:16 PM, Blogger JoFlavio said...

J & T.
Sempre gostei do Michel. Bill Evans pode ter sido o seu ídolo, mas não percebia no piano tanta influência assim. Talvez um pouco pela concepção harmônica, maior legado do Bill ao jazz contemporâneo. Depois de parar com Miles Davis, Bill foi logo substituído por Herbie Hancock, na época com 19 anos. E Hancock veio com um novo approach, super técnico, com harmonias ainda mais elaboradas e um swing incomum. De lá para cá tornou-se a maior referência do piano no jazz, mais ainda por ser extremamente versátil. Para os pianistas mais jovens, Hancock é hoje o cara, acima do Bill. Pelo menos é o que percebo nas conversas. A propósito, perguntei ao Helio Alves qual a maior influência dele. Não pensou duas vezes: Hancock. Abs.
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PS. Tocar com Herbie Hancock é uma aventura sempre perigosa. No Free Festival em São Paulo, homenagem a Jobim, Gal Costa resolveu fazer um duo com Hancock em “A Felicidade”. Do meio para o fim, rolaram algumas desafinadas desconcertantes, quando Hancock passou a harmonizar à sua maneira. Como dizia meu tio-avô: passarinho que acompanha morcego amanhece pendurado...

 
At 2:35 PM, Blogger joyce said...

Jo Flavio, acho que a referência é sempre o cara da vez. Não são melhores nem piores, são diferentes. O Bill morreu em 1980, o Hancock está vivíssimo, e então...

 

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