domingo, fevereiro 17, 2013

1968 - senta, que lá vem história!

 Os acasos da vida me fizeram reencontrar um velho amigo: o grande Evandro Teixeira, papa do fotojornalismo brasileiro de todos os tempos, que me presenteou com estas fotos que aqui posto. São fotos de um show que fizemos em 1968, na boate Sucata, de Ricardo Amaral, e que me rendeu um capítulo no meu livrinho de memórias 'Fotografei Você na Minha Rolleiflex'. Tivesse eu estas fotos quando foi publicado o livro e elas teriam certamente sido incluídas.

(na foto acima, estou concentradíssima, lendo, ou tentando ler, uma partitura, com aquela cara de lua que eu tinha aos 20 anos... e na de abaixo, além de mim e do Bituca, estão Marcos e Francis, este ao piano, além de um irreconhecível José Roberto Bertrami, futuro Azymuth, e Novelli no baixo. Faltaram, do nosso grupo, apenas Wanda Sá e o baterista Vítor Manga)
Segue abaixo o capítulo em questão, que acho que continua pertinente até hoje...
                         
                                SUCESSO                


Sempre me perguntei como seria se em vez de se lançar um disco com o título O melhor de Fulano, fosse lançado O Pior de Fulano. Ou se em vez de se fazer uma Parada de Sucessos, se fizesse, como um dia sugeriu um amigo meu, uma Parada de Fracassos. Grandes surpresas poderiam advir deste novo conceito. Inclusive a descoberta de que o fracasso de anteontem pode ser o sucesso de depois de amanhã _ e vice-versa. Coisa mais fluida, esse tal de sucesso: assim como vem, vai; de repente volta de novo, vai outra vez, torna a voltar, como as luas e as marés. Pior pra quem esquenta a cabeça com isso.
                        
Eu por mim, se fosse voltar atrás e eleger os mais marcantes tropeços da minha razoávelmente longa carreira, teria infalívelmente que passar por uma temporada feita no remoto ano de 1968, numa remotíssima casa noturna chamada Sucata, na Lagoa. O nome da casa já não era dos mais promissores. No entanto, era um lugar mais ou menos da moda, sugestivamente decorado com ferros retorcidos que pendiam do teto ou surgiam pelos cantos. Nesta casa eram realizados espetáculos de música de médio porte, e foi de boa vontade que aceitei participar de um show criado pela dupla Miele-Bôscoli, que se chamaria, singelamente, Festival.
                         
A idéia deste show era bastante simples: juntar cinco vozes mais ou menos recentes, de diferentes  tendencias, numa temporada que correria paralela ao Festival Internacional da Canção, para que os artistas convidados para a parte internacional do festival pudessem também assistir aos espetáculos. Um show para gringos, enfim. O elenco escolhido incluía, além de mim, Marcos Valle, Milton Nascimento, Francis Hime e Wanda Sá, e por aí começava a se desfazer o conceito: os cinco éramos grandes amigos, fãs uns dos outros, e a música que amávamos era, com poucas variantes, a mesma. Um elenco, portanto, menos heterogêneo  do que pretendiam nossos diretores. Ainda assim, a dupla caprichou num press-release que destacava nossas diferenças. Marcos Valle, que na época era sem dúvida o mais bem-sucedido entre nós, seria o “novo ídolo jovem”. Francis, conforme dizia uma gravação de seu parceiro Vinícius, incluída no roteiro, era “o pequeno príncipe da música popular brasileira” _ referência pouco sutil às suas origens aristocráticas. Wanda representava a bossa-nova, com total  propriedade, diga-se de passagem, e Milton recebeu a duvidosa definição de “a moderna voz negra, culta e evoluída”. Quanto a mim, a parte que me coube neste latifúndio me apresentava como “representante da juventude rebelde” _ sabe Deus lá o que isso queria dizer.
                       
O trio 3-D, com Zé Roberto, Novelli e Vítor Manga, era a nossa banda de apoio. Os ensaios corriam bem, cada um de nós preparando um ou dois números solos, e mais alguma coisa em conjunto com outro. Assim, eu fazia um número com Wanda e outro com Bituca. Wanda cantava também com Francis, Bituca com Marcos, e por aí vai. O número dos dois, aliás, era o grande hit  do espetáculo, nada mais nada menos que a célebre Viola Enluarada, que eles tinham acabado de gravar juntos. Eram tempos ainda duros para Bituca, e Marcos, em fase excelente de carreira, era um seu grande incentivador.
                       
Bituca morava num quarto-e-sala em Copacabana, na rua Xavier da Silveira, que ele dividia com amigos: Hélvius Vilela, Celinho do Pistom e sra., Nivaldo Ornellas, Novelli e quem mais chegasse. Éramos como irmãos, corda e caçamba, e ao ver que não cabia mais sequer um alfinete naquele recinto, acabei topando fazer da minha própria casa uma extensão daquele consulado mineiro, com as bênçãos levemente desconfiadas de minha mãe. Outros amigos cariocas estavam fazendo o mesmo, e assim havia recém-chegados de Minas espalhados pelas casas de Luizinho Eça, Mauricio Maestro, Ronaldo Bastos e outros mais. Foi nesse conturbado ambiente que eu e meu amigo mais querido ensaiamos o nosso número para o show. Era Tarde, uma parceria belíssima dele com Márcio Borges, onde eu começava cantando no meu tom, numa preparação para o clímax que seria a entrada de Bituca, com sua voz divina, um tom e meio acima. A idéia era gravarmos juntos essa música para o próximo disco dele _ idéia que não foi em frente, pois naquela época não era ainda moda por aqui o uso do recurso “gentilmente cedido por...” Pertencíamos a gravadoras diferentes, não houve entendimento, e a gravação acabou saindo com meu amigo sózinho, cantando toda a primeira parte no porão, ou seja, no meu tom, grave demais para ele, felizmente cercado por um belo arranjo de Luizinho.
                   
Nosso espetáculo estreou, portanto, com alguns grandes momentos e outros tantos tropeços. Estes ficavam por conta do hilário texto que era dito em off pela voz de Miele, simulando uma entrevista com perguntas modernas do tipo “Wanda Sá, o que você acha da pílula?” Eu, por minha vez, levava a sério aquela história de juventude rebelde, e fazia meu personagem com gosto, com todas as malcriações de praxe. Francis, tão meticuloso quanto tímido, ensaiava diàriamente sua entrada em cena, contando o número de passos até o piano. Raramente dava certo, e nossas gargalhadas atrás do palco eram ouvidas da platéia. Ah, sim: havia ainda o detalhe da platéia.
                      
Nossos produtores  pareciam cada vez mais preocupados com o escasso público. Nós, não: estávamos ali para nos divertir, e quem nos interessava estava lá, como Elis - na época casada com nosso diretor Ronaldo Bôscoli - que não perdia uma só noite. Tinha suas razões: Wanda fazia um sensacional medley de voz e violão, com as músicas Nêga do Cabelo Duro e Aquarela do Brasil, que Elis acabou gravando em seguida no próprio disco, com arranjo absolutamente idêntico. Generosa, Wandinha nunca mencionou o fato. O show prosseguia, cantávamos para os amigos e a produção se descabelava pela falta de pagantes.

(cabe aqui um remix do texto original: a própria Wanda acabou nos contando mais tarde que ouvira este medley diretamente de ninguém menos que João Gilberto - o que já daria a Elis cem anos de perdão...)
                   
Fomos finalmente informados de que a casa resolvera encurtar a temporada e colocar em nosso lugar um show dos tropicalistas baianos, de maior potencial de bilheteria. Assim foi feito. O show dos baianos foi de fato um sucesso, e como dizia o Tom, sucesso é um perigo: por causa desta temporada, num nebuloso episódio envolvendo a bandeira nacional, Caetano e Gil seriam presos. A boate Sucata virou, tempos depois, o Teatro da Lagoa. Nossos elencos seguiriam em frente, cada um de nós em seu caminho, prontos para as próximas luas e marés em nossas vidas.

11 Comments:

At 3:10 PM, Blogger pituco said...

joyce,

fotos e texto pra lá de bacanudos...o livro, ainda não li...portanto, continua tudo inédito...obrigadão, moça rebelde...rs

pôxa,'tarde'... era pra ser um dueto contigo no disco do milton???...uau...despertaste a vontade de ouvir...inclusive, piramidal o dueto com o gonzaguinha...'antonico'...

abrsonoros

 
At 10:26 PM, Blogger Luiz Antonio said...

Joyce, quanto ao livro, sempre soube dele, mas nunca encontrei por estas paragens do sul da ilha, com internet deve estar mais fácil. Gostei de ler. Situações meio "saias justas" contadas com a leveza e bom humor típicos do gene carioca na veia. Gosto de escrever também. (acho que isso nunca deves ter percebido... pelo tamanho dos comentários..rsrsr).
Sobre o timaço reunido no show, a história se encarregou de contar a história do SUCESSO.
Quero é pegar o gancho na questão dos nomes das casas noturnas, nomes que buscam ser alternativos diferentes e, por vezes, acabam sendo engraçadamente "condenantes". Como escreveste: SUCATA predestinava o futuro!
Li esses dias que grande empresária e cantora bahiana, Ivete Sangalo, tem uma produtora com nome de "Caco de Telha", li isso numa reportagem que falava de um grande prejuízo que ela tivera, que fez com que afastasse o irmão do comando das operações da produtora, ou seja, briga familiar, dinheiro, contas no vermelho. Resumo: voaram "cacos" pra tudo que era lado! Também acabo de lembrar de um show de música, de uma cantora local, que estava em cartaz num clube onde passei férias, o nome do show: "TRAUMA", sobre ele nem preciso comentar.

 
At 3:15 AM, Anonymous Túlio said...

será que elis sabia da origem joãogilbertiana do medley?
acho que não.
dada a implicância histórica que havia entre eles, perigava elis não gravar.
beijos

 
At 11:14 AM, Blogger Bernardo Barroso Neto said...

Já tinha lido essa história e tantas outras maravilhosas que você contou no seu livro. Adorei as fotos e o texto.

 
At 1:25 PM, Blogger Zé Antônio said...

Joyce, Tenho o livro desde quando foi lançando, adoro!!! lendo aqui seu blog,(que visito com frequencia rs) me deu uma vontade reler o livro, farei isso hoje quando chegar em casa...
Obs: Também gostei das fotos...
Bj

 
At 2:19 PM, Anonymous Baptistão said...

Também me deu vontade de reler o livro, que, no momento, está emprestado a um amigo que escreve um livro sobre... Elis Regina. Ótima história, como as demais do livro. Pena que as fotos não chegaram a tempo. (Pretexto para uma nova edição, revisada e ampliada?) Ah, em tempo: daria tudo pra saber quem era o figurão que você visitou junto com o Dori. Até desconfio de quem seja, mas acho que você não revelaria nem sob tortura.

 
At 6:03 PM, Blogger joyce said...

O livro tá com o Julio Maria, Baptistão?

 
At 6:04 PM, Blogger joyce said...

O livro tá com o Julio Maria, Baptistão?

 
At 6:08 PM, Blogger joyce said...

Se estiver com ele, ele precisa saber desse remix, Elis/Wanda/João...

 
At 6:18 PM, Anonymous Baptistão said...

Está sim, Joyce. E acabei de falar com ele sobre isso, antes mesmo do seu toque. Ele acha que a Elis já tinha gravado a Nega antes, com o Jair, mas eu acho que não. Fiquei de conferir nos meus discos, quando chegar em casa.

 
At 12:47 AM, Anonymous Odimar Feitosa said...

Joyce,
Que maravilha ler, (quase como um ouvir) suas histórias da nossa música, de um periodo em que eu ainda nem existia. Nossa, 'jovem rebelde', o que mais me deixou curioso foi de tentar forjar na minha cabeça como seria "Tarde" cantada por ti e Milton... É uma das músicas dele que mais gosto. Quem sabe um dia você(s)venha(m) reviver esse momento e o legará(ão) para a posteridade.

[ ]'s

Odimar Feitosa.

 

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