sexta-feira, outubro 18, 2013

Meu amigo faz cem anos

No centenário de Vinicius de Moraes, um texto que está no meu livro, "Fotografei Você na Minha Rolleiflex".
                                               A ERA

Os imperadores japoneses sempre tiveram o costume de dar nomes a seus reinados, como uma referência no tempo para o país. Assim, um cidadão japonês nascido, digamos, em 1945, sob o impacto da bomba de Hiroshima, poderá dizer que nasceu na Era de Showa, que significa, irônicamente, iluminação e paz. Foi assim que o imperador Hiroíto denominou oficialmente a sua época. Vinicius de Moraes, que nasceu na Gávea e não tinha nada de oriental, também dividiu em eras sua tumultuada vida. Pelo menos na visão dos amigos, que se referiam a ele no tempo, sempre relacionado, não com um imperador, mas com as diversas imperatrizes que sobre ele exerceram reinado. A República Velha da vida de Vinicius é o tempo de sua juventude, de rapaz solteiro, época longínqua, pré-histórica. Depois da primeira era, a Era de Tati, até o final de seus dias, ele foi sempre o mais casado, ou casável, dos seres.  Um homem que amava as mulheres, mas sobretudo, um grande fã do casamento em si mesmo.

Conheci Vinicius na Era de Nelita. Escutei muitas histórias sobre como fora ele nas Eras anteriores (Tati, Lila, Lucinha, esta última, tida como seu grande amor pela maioria dos amigos). Nunca pude apurar grande coisa sobre suas vidas de antes. Mas sei que na Era de Nelita, ele era jovem, muito mais do que fariam supor sua idade e sua aparência. Era alegre e amável, como o Rio de Janeiro daqueles tempos. Tinha uma grande energia, dentro daquilo que se pudesse considerar um parâmetro de energia para alguém como ele. Era capaz, por exemplo, de se internar numa clínica para um tratamento de desintoxicação alcoólica, levar os amigos junto e continuar a festa lá dentro, com médico e tudo. Recebia gente em casa a qualquer hora, numa hospitalidade sem limites. Morava numa cobertura, e desejava o mesmo para cada ser humano, pois, dizia, “um homem numa cobertura é como um capitão no convés de seu navio”. Flertava muito, mas se proclamava fiel. Era bom e generoso, assim o conheci, promovendo amizades e parcerias, como um Cupido musical. No dia mesmo em que nos conhecemos, me adotou imediatamente como cúmplice. Já na primeira semana, me fez ir com ele a Nova Iguaçu, acompanhá-lo num encontro com normalistas a que se comprometera em comparecer. Tive que inventar canções que não sabia, e depois da palestra e do show improvisado, ir com ele a um almoço, onde uma soprano de bigodes cantava a Serenata do Adeus. As estudantes o presentearam com uma caneta, que ele repassou para mim. Perdi não sei onde este primeiro presente que ele me ofereceu.
             
Na Era de Christina, ele não me parecia tão feliz _ não por culpa da imperatriz, evidentemente. Nos encontramos em Lisboa, onde ele práticamente se exilara, e onde eu estava fazendo uma série de shows com Edu Lobo. Vinicius estava deprimido com a situação do Brasil, com o AI-5, com sua demissão do Itamarati, pois, bem no fundo, ele se orgulhava de sua condição de diplomata, apesar de já viver como poeta. A Era de Christina foi relativamente curta, e acabou numa briga violenta em que ela, grávida, o acertou com um castiçal, ao tomar ciência de um apronte dele. Anos mais tarde, ele ainda contaria esta história com indisfarçado orgulho: “essa mulher quis me matar, porque me amava”. A imagem que tenho dele nesta fase me remete a um restaurante lisboeta, Vinicius comendo sózinho seis lagostins, a cara vermelha, suada. Não podíamos contar para ninguém no Brasil que ele já tinha sintomas de diabetes. Imagina só se ele ia fazer dieta e deixar de beber!
            
Perdi Vinicius de vista na Era de Gesse. Foi quando ele se mudou para a Bahia e se tornou hippie. Esta foi uma era bastante controversa, da qual nada posso dizer, porque não estive lá. Mas nos reencontramos num réveillon onde ele estava sem ela, no meio de um bando de amigos, e me chamou para trabalhar com ele. Durante os ensaios para esta temporada, dava para ver que ele já se despedia de mais um reinado _ embora, aparentemente, a imperatriz não estivesse percebendo.
             
Acabei, involuntariamente, participando do surgimento da Era de Marta. Mais uma vez na posição de guardiã de um segredo seu, desta vez, bem mais sério do que um simples jantar à portuguesa. Acompanhei o romance de perto, como testemunha e confidente dos dois, e ainda tive que passar por namorada do meu amigo em Buenos Aires, para que a família de sua amada não desconfiasse do que estava se passando. Ela tinha 23 anos, era argentina, poeta e estudante de Direito. Era linda, e estava apaixonada por ele. Viajou conosco para a Europa, e algum tempo foi preciso até que assumissem de vez o casamento, quando finalmente ela foi morar com ele na casinha da Gávea.
            
O tempo era o maior inimigo de Vinicius na Era de Marta. A diferença de idade entre os dois fazia com que ele se desse conta, cada vez mais, da finitude da própria vida, de modo que, quando perdia um amigo, entrava numa depressão sem fim. Cometi, por isso, uma grande gafe, ao lhe contar, inadvertidamente, sobre a morte de um de seus amigos mais queridos, fato que a família cuidadosamente lhe escondera. Uma noite, levamos Vinicius e Marta a uma festa junina na casa de Maurício Tapajós, em Jacarepaguá. Ele estava se divertindo muitíssimo, pois, além de tudo, acabara de rever o pai do anfitrião, Paulo Tapajós, que fora seu primeiro parceiro. Mostrei a ele um poema de Mário Quintana que eu musicara e gravara na Itália. Meu problema era como entrar em contato com o poeta para que ele autorizasse a gravação. Vinicius me tranquilizava, “não se preocupe, a gente fala com o Érico Veríssimo, e ele manda a fita para o Quintana”. “Mas Vinicius”, eu disse, sem pensar, “o Érico morreu no mês passado”. Pronto, a noite acabou ali. Vinicius ficou arrasado e tivemos de levá-lo para casa na mesma hora. Ainda tive que ouvir uma bronca, muito justa, de Lygia, irmã dele. Quem me mandou falar demais? Felizmente, ele telefonou no outro dia, já refeito e me perdoando.
             
Não cheguei a ver de perto o fim da Era de Marta, nem acompanhei a Era de Gilda. Desta vez, era eu quem estava longe, vivendo a minha própria era, com as bençãos do meu amigo: “vai nessa, que você arranjou um homenzinho porreta!” Segui seu conselho. Assim, não nos despedimos quando ele partiu de vez. Mas ainda penso sempre naquele meu poeta porralouca, e imagino que ele estará, em algum lugar, vivendo a sua Era de Showa - iluminação e paz.

3 Comments:

At 9:33 AM, Blogger Luiz Antonio said...

Belo texto, Joyce.
Informação acompanhada de um tom passional, que o tema e o protagonista exigem.
Como não falar de amor sem falar de Vinicius ou como não falar de Vinicius sem falar de amor e como viver grandes amores sem ter perdido o prumo, errado a mão, "bebido cachaça em gargalo"

Parabéns!

Esse livro merecia ser reeditado, pois aqui no sul da ilha não chegou.Busquei na época e a internet, acho, nem era iniciante no mercado de vendas.

 
At 7:09 PM, Anonymous Márcia said...

Oi Joyce, ainda sobre o nosso poetinha maravilhoso, mas sob outro tema.
Recebi um e-mail maravilhoso sobre Vinicius, como ele se refere a amizade. Lindo. Se você disponibilizasse algum e-mail que eu pudesse te enviar, eu o faria. A não ser que você já tenha recebido.
Abraços,
Márcia (de Brasília)

 
At 5:10 PM, Anonymous Kaiser Lima said...

Sobre este maravilhoso texto do poetinha, reproduzi na minha face-fan-page do Vinícius dando a referência. Muito bom saber que ele está vivinho da silva graças aos seus muitos amigos...

Parabéns!

https://www.facebook.com/sonetodefidelidade/posts/10152011122072099

 

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