terça-feira, abril 01, 2014

Primeiro de Abril

Onde você estava em 1964? Se você tem mais de 50 anos, ainda que estivesse no berçário, alguém vai querer saber. Eu vou logo dizendo: estava adolescendo, em casa, na praia, no colégio, preocupada com os namoradinhos da hora, com as provas do semestre, com meus LPs de João Gilberto. Minha família apoiou o golpe: minha mãe, bastante ousada em certas coisas e super conservadora em outras, temia que o apartamentinho de dois quartos no Posto Seis, que ela comprara com tanto esforço, tirado do seu modesto salário de funcionária pública, viesse a ser ocupado por famílias de camponeses, caso o Brasil virasse a Rússia de 1917. E acho que a maioria dos nossos vizinhos tinha os mesmos temores. Na noite do 1º de abril daquele ano, as janelas dos outros apartamentos ostentavam velas acesas, em sinal de apoio. Algumas famílias brindavam com vinho do Porto. A maior parte se arrependeria amargamente, depois que deu no que deu.

Quatro anos depois, quando houve o AI-5, o 'golpe dentro do golpe', eu já era outra pessoa, estudava na PUC, circulava no meio artístico, tomara conhecimento de mil coisas das quais não tinha a mínima idéia antes. Frequentava as passeatas, fazia shows para arrecadar fundos para publicações anti-regime, cheguei a esconder em minha casa amigos procurados pelo DOPS, passei pelo crivo da censura, estava ligada em tudo o que estava acontecendo. Como se pode mudar em apenas quatro anos…

Penso nisso enquanto vou lidando com questões do dia-a-dia, dois CDs gravados quase ao mesmo tempo, o que praticamente equivale a ser mãe de gêmeos, sem saber a qual devo dar atenção primeiro. Dois CDs que dificilmente sairão aqui no Brasil. Et pour cause: cada vez mais me convenço de que o destino de minha música é morar no mundo. 50 anos depois, temos uma democracia, mas certas coisas continuam no exílio.

7 Comments:

At 11:38 AM, Anonymous Túlio said...

pois é joyce,
eu nasci logo depois, antes do tempo, de medo e susto de minha mãe.
e vivi sem saber a educação neste país ser desprezada e destruida aos poucos.
só fui começar a entender o que acontecia na época da anistia, pois o medo era tanto que as pessoas não falavam nada sobre política.
estudei numa universidade sucateada, com professores desestimulados.
é um breve resumo.
a democracia veio, e a destruição do ensino ainda continua.
e talvez aí está a raiz dos problemas de hoje. a educação ainda está também no exílio.
quanto a seus discos, espero que alguém faça o esforço de trazer estas bolachinhas para o brasil.(quem dera eu fosse um produtor e pudesse agitar estas coisas).
ainda que muitos não queiram, nós merecemos sim sua música criativa.
se sua música vive mais lá fora que aqui, não é por um caminho natural, mas por desvio de rota feito por outros.
espero que pelo menos europa e eua se interessem por estes discos para pelo menos ser possível importar.
beijos
p. s. só pra terminar, de todos os artistas que tem seu trabalho exilado do brasil, você é a que mais conseguiu trazer, se não tudo, grande parte do que produziu lá fora pra aquí. e nós agradecemos.

 
At 12:37 PM, Anonymous Mauricio said...

Estava no colegio, quando veio o boato de bomba. Fui pra casa, tentar tocar 'O barquinho'. Tenho fe, que um dia vou conseguir e que nossa democracia vai dar certo.

 
At 2:13 PM, Blogger joyce said...

Obrigada, Tulio, tenho feito o possível, mas às vezes o mercado brasileiro não comporta tantos lançamentoe, e sou obrigada a escolher, como foi ano passado o caso do 'Rio x Tudo'.

E vamos tocando o barquinho, Mauricio!

 
At 3:36 PM, Blogger Luiz Antonio said...

Bah! . Já abordamos o tema em outras ocasiões,aqui.
Nasci em 64, adolesci (existe isso?) nos anos 80, sim porque naquela época com 15 eu assistia Sitio do Pica Pau Amarelo e brincava de carrinho. Só fui sair de casa atrás de minha turma com 18,quando sai do colégio de bairro e fui estudar em escola pública, no centro da cidade, ensino técnico, gente mais velha (ou mais sofrida, que trabalhava para ajudar em casa) com eles a vida se abriu e fui assistir ao meu primeiro show: LUAR do Gilberto Gil, no Gigantinho. Vivências de cada um.
Vi a tal anistia, a volta dos que foram sem eu nem saber quem eram e muito menos por quê tinham ido.
Lendo assim, nesse resumo, até parece algo alienado, mas não é. Todos da minha idade eram parecidos e se algo me diferenciava era talvez o fato de sempre ter sido "pensador", "reflexivo", tentando entender o por quê disso ou porque tal coisa era assim... Não como um rebelde revoltado, mas como um observador do mundo onde estava inserido.
Acho que isso é um traço de minha geração. E, talvez isso seja reflexo desse período histórico, onde o "estudo dirigido" aplicado em sala de aula te fazia sentar na sala e seguir em frente, sem olhar pro lado, sem outra alternativa correta e sem pensar muito, pois em caso de dúvida a resposta estaria na formulação da pergunta que se sucederia, logo abaixo, no livro . Objetivo: não pense muito!
Passei de ano, me formei, mas essa metodologia não me pegou. E digo que ela era justamente pensada, para quando a anistia chegasse, pois ela viria_ com o anseio de liberdade dos que foram aprisionados e iria se deparar com o pior: a falta de preparo dos filhos do regime em lidar conscientemente com a liberdade e a democracia. Deu no que deu. Até nisso fomos vítimas, assim como foram os escravos libertos em 1888. Livres, mas sem o essencial: a educação para liberdade e para o auto conhecimento. Resultado: O Brasil perdeu o Brasil. Felizes dos que se salvaram, e foram poucos.

 
At 6:37 PM, Blogger joyce said...

De acordo, Luiz Antonio.

 
At 6:48 PM, Anonymous Sandra Bittencourt said...

Olá Joyce,

Sou adepta do realismo-otimista.
Então, 'dois cds que dificilmente sairão no Brasil' soa precipitado.
Certas coisas continuam no exílio.
A diferença é que, agora, dispomos de mais atalhos para libertá-las.
À propósito: 'No Mistério do Mundo' é de primeiríssima, Joyce. Falei sobre o disco de Maria Rita hoje, e claro, teu samba fecha o comentário. Segue o link:
http://blogs.recifecbn.com.br/cultura/coracao-a-batucar-o-samba-sem-caricaturas-grifado-por-maria-rita/
Abs,
Sandra B.

 
At 11:32 AM, Blogger pituco said...

joyce,

sorte minha que sou exilado e tenho acesso a todo esse acervo brasuca made in japan e usa…

abrsonoros e segue o baile...

 

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