terça-feira, junho 24, 2014

Raízes

Acho que já mostrei aqui a capa do novo CD, 'Raiz', que está sendo lançado no Japão e que é, no momento, minha prioridade. Já comentei no FB sobre algumas perguntas engraçadas que recebi de jornalistas de lá, sobre o fato de este CD ser - e ao mesmo tempo, não ser - um CD de bossa-nova. Pois o repertório é quase todo bossanovista, já que a proposta era revisitar as raízes musicais de minha adolescência. Mas a maneira de fazer é minha mesmo, muito pessoal, e não poderia ser de outro jeito. Como comentei, já existem pessoas maravilhosas fazendo bossa-nova clássica há 50 anos, e eu não sou uma delas. Então, claro, fiz do meu jeito mesmo.

Outra questão que me foi apresentada pela imprensa japonesa: o CD abre com a 'Copacabana', de Braguinha e Alberto Ribeiro, e até aí fica fácil entender, pois Copacabana é o bairro onde nasci e me criei, na aprazível e (ainda) tranquila localidade do Posto Seis, divisa com Ipanema. Mas fechar o CD com a desconhecida - e linda - 'Canto de Yansan' meio que confundiu o pessoal. Uma canção que Mario Adnet e Phillipe Baden Powell descobriram no fundo do baú, e gravaram no projeto 'Afrosambajazz'. E pela qual me  apaixonei, de cara.

E vem a inevitável pergunta: você é do candomblé? Não, não sou, embora respeite muitíssimo as tradições afro-brasileiras. Cantei com toda a alma de que dispunha naquele momento, porém, em primeiro lugar pela beleza da canção de Baden Powell e Ildásio Tavares, um afro-samba que não fez parte da série de Baden e Vinicius, justamente por não ser de Vinicius. Ildásio Tavares, falecido poeta baiano e profundo conhecedor do candomblé, escreveu esta letra, cuja autenticidade no glossário fiz questão de pesquisar, falando do momento da tempestade, do encontro do raio com o trovão, ou, nas palavras dele, 'o casamento de Xangô e de Oyá'. Oyá sendo um dos nomes de Yansan, ou Iansã, como quiserem.

Em segundo lugar, cantei porque, num momento em que as tradições afro-brasileiras têm sido ameaçadas pela intolerância religiosa de alguns grupos evangélicos, inclusive de forma violenta, com invasões e destruição de templos, me pareceu pertinente relembrar a beleza destas tradições, que fazem parte da nossa cultura e a enriquecem muito mais do que alguns dos pavorosos hinos gospel, de inspiração norteamericana-brega, que a gente ouve no rádio dos taxistas de vez em quando, e que parecem pautar o novo jeito de cantar dos brasileiros, pelo que se vê em programas como The Voice Brasil'.

A mitologia do candomblé é belíssima e merece ser preservada. Está todinha no lindo CD 'Áfrico', de Sérgio Santos, com letras de Paulo César Pinheiro (nenhum dos dois é adepto da religião, diga-se). Está nos afro-sambas de Baden e Vinicius, claro. Está em gravações de Bethania, Caetano, Gil, está na obra de Caymmi (como esquecer a 'Oração a Mãe Menininha'?), faz parte da cultura brasileira. Somos quem somos. Por isso, embora não sendo pessoalmente adepta desta crença, quero ajudar a preservá-la para as gerações futuras, do jeito que me for possível. Pra que o Brasil possa ainda conhecer o Brasil, ainda que através de um modesto disquinho meu, feito por encomenda do Japão.


segunda-feira, junho 16, 2014

Tabus

Outro dia postei aqui uma história acontecida nos meus 19 anos, quando conheci Torquato Neto e os baianos. E, de passagem, contei que fui 'proibida' de participar de um trabalho numa peça amadora, onde eu seria assistente de direção musical. Houve quem estranhasse essa proibição, pois hoje em dia não se proíbe mais nada a uma pessoa de 19 anos. Mas em 1967 a coisa era outra. Mudam os tempos e os costumes.

Minha mãe era até bastante liberal, em relação a outras mães que eu conhecia. Minhas amigas eram proibidas de namorar, eu não. Tinha uma liberdade relativa, podia frequentar festinhas e eventualmente sair com rapazes. Claro que havia um mega tabu em relação a sexo: naqueles anos 1960, tal comportamento era impensável - o que não quer dizer que não se fizesse. Mas conversando com algumas amigas de colégio da época, fico sabendo que pelo menos as meninas do Colégio São Paulo, em sua maioria, casaram todas conforme mandava a tradição. Caramba, então fui a única maluca da minha turma a romper com isso?

De qualquer forma, a proibição de trabalhar com gente 'de teatro' - ou 'do meio artístico', que seja - na verdade escondia esse viés moralista, o medo de que a menina se 'desvalorizasse' no mercado matrimonial, futuramente. Como eu não tinha pai que exercesse essa função de fiscal da minha vida íntima, minha mãe - separada, e vítima ela mesma de todo o tipo de preconceito por conta disso - tomou a si essa pesada função. Nunca pudemos ter uma conversa aberta a respeito. Minha linda e corajosa mãe era travadíssima nesses assuntos. O que aprendi, aprendi em conversas com amigas. E as amigas do colégio de freiras, pela  própria inexperiência, não podiam ser minhas confidentes nessa hora. Aliás, ninguém era: segui em frente, nesse particular, em total solidão. Só depois de conhecer outras meninas envolvidas com o ambiente de música e artes, pude receber algum tipo de orientação, tipo encontrar um médico, tomar pílula, etc. Tudo até então era feito correndo riscos e na base do improviso.

Por que estou contando tudo isso? Porque hoje me dou conta de coisas que fui simplesmente vivendo, sem parar pra pensar em nada. Sei que me casei cedo demais, levada pelo simples desejo de ser independente e me libertar dessa tirania materna - cheia de amor, é verdade, mas incrivelmente intrusiva e autoritária, opinando em tudo e querendo decidir sobre minha vida e meus relacionamentos. Portanto saí de casa, o que era meu sonho. Só que através do casamento, o que significa que de uma tirania passei para outra pior: a tirania masculina, que desconsidera o pensamento e a personalidade da mulher e a reduz a mera propriedade. Dessa, prefiro não falar, pois envolve outras pessoas queridas. Mas fazer essas reflexões hoje me dá a exata medida do quanto é preciosa a liberdade que finalmente conquistei, para simplesmente existir e ser quem sou. E do quanto minha geração de mulheres teve de lutar para se libertar de todos os grilhões emocionais, afetivos, sociais e outros tantos, onde alguém sempre se arvorava a ser dono ou dona de nossas vidas, nossos  corpos, nossas decisões mais íntimas. Como se alguém pudesse ser dono de alguém.

As meninas de hoje não fazem idéia do quanto nos custou a liberdade delas. Mas ainda assim agradeço, quando vejo a situação das mulheres em outros países. O feminismo ainda tem muito o que fazer nesse mundo.


quinta-feira, junho 05, 2014

Meu pensamento viaja

Agora paro tudo, e me preparo. É aquela época em que vem chegando a hora de ir pro Japão, um dos meus momentos favoritos do ano.

(essa lindíssima lagartinha da minha rua - símbolo da importância de se olhar para as coisas pequenas e, principalmente, para o chão - me representa)

Desta vez teremos um novíssimo integrante na banda, o jovem e destemido Bruno Aguilar, que virá substituir Rodolfo Stroeter, no momento às voltas com seu trabalho no Pau Brasil. Isso ocorre na hora em que lançamos um novo CD por lá, "Raiz", que teve participação bastante intensa do Rodo. Por outro lado, será sempre ótimo ter um novo integrante no grupo, trazendo um sopro de novidade e juventude.

Sei que o trabalho vai ser pesado - como se a viagem em si mesma não fosse… - mas não me canso de dizer: adoro, adoro, adoro. Serão, como sempre, dois shows por noite, mais a infindável ciranda de divulgação, que desta vez incluirá um rápido live na Tower Records de Shibuya. O pessoal da gravadora lá em Tokyo tem imaginação, e está sempre inventando um jeito de não me deixar ficar à-toa. Não estou reclamando. Adoro. Mesmo.

A Copa do mundo começa por aqui semana que vem. Certo. Vamos ver como o país se comporta. Concordo com quem diz que não tínhamos cacife pra bancar tamanho evento. A festa podia ser em algum outro hospitaleiro país da América do Sul (se bem que não sei de nenhum em condições reais pra isso). Mas também concordo com quem diz que a Copa não resolveria mesmo nossos problemas de educação, saúde, segurança e pior, inflação - que já vivi, por décadas passadas, e esperava não mais ter de lidar com ela. E que já que teremos Copa, vamos ao menos tentar ser gentis com as visitas. Ou o legado será o nosso próprio complexo de vira-lata confirmado e carimbado.

Esse complexo, quem faz música criativa no Brasil não pode ter. Portanto vamos ao mundo, que nos recebe e respeita. No dia da final da Copa estaremos tocando em Tokyo. Esse gol, ao menos, a gente garante.